A revolução copernicana nos estudos entre o legal e o ilegal

Karina Biondi
Universidade Estadual do Maranhão
karinabiondi@professor.uema.br


Como se sabe, no século XVI, Nicolau Copérnico apresentou uma teoria de acordo com a qual, diferentemente do que se pensava na época, não era o planeta Terra o centro do cosmos, mas sim o Sol. De acordo com essa teoria, os outros astros não giravam em torno da Terra; pelo contrário, ela é que girava, com os outros planetas, ao redor do Sol. Copérnico, em suma, deslocou o centro do mundo, o lugar em torno do qual todos os outros astros girariam. A Terra, que passou a ser considerada parte de um universo mais amplo, deixou, então, de ser o ponto referencial para produção de conhecimento acerca dos outros astros. Assim, a teoria de Copérnico revolucionou a astronomia, mas também a própria concepção de centralidade do homem no universo.

Esse descentramento do ponto de vista proporcionado pela Revolução Copernicana só lentamente foi absorvido pelas ciências humanas, especificamente na antropologia. É certo que, pelo menos desde Boas, Malinowski e Mauss, a antropologia esteve atenta a outras mentalidades e culturas, a outros pontos de vista (Boas, 2004; Malinowski, 1978; Mauss, 2013). Ainda que seja uma disciplina que se produz mediante sua própria crise, que se alimenta e se potencializa por meio de críticas às suas próprias práticas, a antropologia por décadas se ateve a buscar, naquilo que chamava de sociedades primitivas, quais as formas de organização que substituiriam o que o Ocidente conhecia por Estado. Assim, durante muitos anos, antropólogas e antropólogos dedicaram-se a compreender como, na ausência de Estado, as sociedades ditas primitivas se organizavam. Os africanistas, por exemplo, enxergaram no parentesco e no esquema de linhagens a formação de grupos corporados que substituíam as instituições estatais (Fortes y Evans-Pritchard, 1940).

Entretanto, na década de 1970, Pierre Clastres, um etnólogo francês que escreveu sobre povos ameríndios, escreveu o artigo Copérnico e os selvagens (Clastres, 2003). Nele, o autor apresentou uma abordagem que desatrelava política e Estado. Para Clastres, a ausência de instituições estatais entre os ameríndios não constituía uma falta que um dia seria sanada ou algo a ser preenchido com substitutos que desempenhassem as mesmas funções que ele. Pelo contrário, os ameríndios rejeitam ativamente o aparecimento de figuras de mando, de hierarquias que, irremediavelmente, os levariam a uma organização do tipo estatal. Existiam, entre esses povos, mecanismos que inibiam o aparecimento de formações Estatais. Assim, em seus trabalhos, Clastres (2003) mostra como os ameríndios exerciam uma política que não só estava desassociada da ideia de Estado, mas também ‒e principalmente‒ atuava ativamente contra o aparecimento das relações de mando, hierarquia e dominação que resultariam na instalação do Estado em suas sociedades. Eram, em suas palavras, “sociedades contra o Estado” (e não sem Estado).

Com isso, Clastres oferece para a antropologia (e também para a filosofia) a possibilidade de se pensar micropolíticas, exercidas cotidianamente e não necessariamente vinculadas ao Estado ou a suas instituições. Em outras palavras, Clastres liberou a possibilidade de se pensar política desassociada de Estado (ou de seus substitutos). Como enfatizaram Deleuze y Guattari (1980), a Revolução Copernicana proposta por Clastres na Antropologia não se limita ao tratamento de sociedades que se opõem ao Estado ou à ideia de formação estatal, mas tem a ver com o descentramento da análise, com a possibilidade de realizar análises não estadocêntricas. Não se trata apenas de deslocar a análise do Estado para um fora, para um outro contra o qual se atenta e se coloca em risco. Não é, portanto, meramente a adoção do ponto de vista daqueles implicados nas atividades criminalizada. Trata-se, sobretudo, de expulsar o Estado, ou a forma-Estado, do centro das análises.

A expulsão do Estado como centro da órbita analítica ou como figura de pensamento não implica, de forma alguma, a desconsideração da política. Pelo contrário, tira das políticas as amarras do Estado. É essa concepção de política, de uma política que nada tem a ver com política partidária ou representativa, que diz respeito ao modo como os prisioneiros conduzem suas existências, que inspirou minha pesquisa sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC), um coletivo formado a partir das prisões de São Paulo, no Brasil.

Embora eu o denomine como um coletivo (Biondi, 2010) ou movimento (Biondi, 2018), o PCC é habitualmente chamado, pelo poder público mas também pelas abordagens científicas hegemônicas, de “crime organizado” ou de “organização criminosa”. Tendo como ponto central da análise a preservação do Estado Democrático de Direito, um grupo de pessoas que praticam atividades criminosas é concebido como algo que ameaça a “ordem social”, como um “problema” de “segurança pública”. Trata-se, portanto, de uma “patologia” a ser sanada e, em última instância, de um inimigo a ser combatido. Nessas análises, o Estado não é somente o que está sendo ameaçado, mas também um modelo interpretativo: pensa-se o PCC a partir da forma-Estado. Nesses termos, as atividades e o funcionamento estatal são usados como uma analogia para se entender o PCC. Entretanto, a analogia de que se faz uso acaba por ser apresentada como uma característica do objeto de análise. No caso em questão, o resultado dessa operação é a concepção do PCC como um “Estado Paralelo”, como uma cópia mal feita do Estado, uma estrutura hierárquica dotada de uma cadeia de comando, uma empresa de estruturação vertical (ou piramidal) assentada sobre bases hierárquicas. Essas mesmas análises indicam que o PCC assume o espaço deixado pela “ausência de Estado”, em situações de “Estado fraco”. Limitadas as análises a alusões sobre as falhas do Governo em fazer da prisão e do controle do crime o que se espera, o remédio apresentado para esse “problema” é “mais Estado”, o que inclui “instituições mais fortes”, “mais prisões”, “mais policiamento”.

É curioso ‒e sintomático da persistência do Estado como centro das análises‒ que essa abordagem hegemônica acerca do PCC seja resultado tanto de pesquisas acadêmicas quanto de investigações criminais. Produção acadêmica e investigação policial oferecem, portanto, um só resultado. Num caso e no outro, as características que atribuem ao PCC se aproximam de características que já haviam sido formuladas anteriormente (por acadêmicos, juristas e até pela ONU) para definir “crime organizado”.

Contudo, essa operação analítica descrita acima é diametralmente oposta daquela que foi realizada por Pierre Clastres e serviu de inspiração para o pensamento de Deleuze e Guattari. Essa perspectiva, que parte da Revolução Copernicana proposta por Clastres, oferece produtivas lições para estudos relacionados ao que está entre o legal e o ilegal. Ela convida a deixar de orbitar o Estado, permite abordar o legal e o ilegal sem uma visão que, de princípio, é estadocêntrica, torna possível não ter o Estado Democrático de Direito como base para se pensar, por um lado, dinâmicas ilegalizadas e, por outro, práticas legalizadoras.

Ao realizar uma revolução copernicana no modo de ver o PCC, minha pesquisa apresentou resultados substancialmente diferentes do discurso hegemônico. Tendo como principal interesse os problemas formulados pelas pessoas que estão diretamente implicadas na produção do PCC, bem como a forma como buscam solucioná-los, busquei descrever as micropolíticas que estão na base desse fenômeno e que se davam no cotidiano das prisões e periferias de São Paulo.

Isso permitiu enxergar, nas dinâmicas constituintes do PCC, o modo como buscava-se lutar contra o que chamavam de “Estado opressor” (nome dado em função dos maus tratos que diziam sofrer no cárcere), como também os mecanismos acionados para impedir o surgimento da forma-Estado em seu interior, para evitar que ele próprio se tornasse uma reprodução daquilo contra o que lutava. A ênfase na ideia de “Igualdade”, uma das palavras que compunham o lema do PCC (“Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade”), instaurava tensões que infiltraram e percorreram suas dinâmicas, implicando formações e supressões simultâneas de focos de poder, ao lado de construções e dissoluções simultâneas de hierarquias.

Fazer das dinâmicas do PCC o ponto de partida para minha análise implicou olhar para o Estado a partir de uma perspectiva descentrada. A partir desse ponto de vista, o PCC não é mais visto como um “Estado paralelo” e nem como algo absolutamente exterior ao Estado. Diferentemente, ele próprio é resultado de práticas estatais, de políticas criminais, do sistema carcerário, das forças de segurança, das instituições judiciais. Da mesma forma, dispositivos jurídicos, política penitenciária e atuação policial são tencionados pelo PCC e assumem formas que são resultados desse tencionamento. Assim, se o “Mundo do Crime” é produto também dos órgãos e ações de combate ao crime, essas instituições também resultam do crime.

Essa mesma perspectiva é fértil para se pensar o próprio Estado. Sem ter a forma-Estado ou o ideal de um Estado Democrático de Direito como centro da análise, é possível escrutinar as formas como as próprias instituições estatais se produzem. Nesse sentido, meus investimentos atuais de pesquisa, longe de buscarem verificar a efetividade das políticas de segurança, se dedicam a explorar de que maneira a segurança pública é constituída, quais são as dinâmicas que a compõem.[1]

Apesar de ser dedicada ao estudo de povos ameríndios, a obra de Pierre Clastres é uma notável inspiração para todos os que buscam se livrar de vícios analíticos e epistemológicos, de caráter estadocêntricos. É certo que há outros caminhos de desintoxicação. Mas foi Clastres que me levou ao descentramento analítico necessário para uma aproximação com a perspectiva “entre o legal e o ilegal”.

Bibliografia

Biondi, Karina (2010), Junto e Misturado: Uma Etnografia do PCC. São Paulo, Terceiro Nome.

__________ 2018. Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia e lei no PCC, São Paulo, Editora Terceiro Nome.

Boas, Franz (2004), Antropologia cultural, Rio de Janeiro, Zahar.

Clastres, Pierre (2003), A sociedade contra o Estado, São Paulo, Cosac Naify.

Deleuze, Guilles; Félix Guattari (1980), Mille plateaux – Capitalisme et schizophrénie, Paris, Les Éditions de Minuit.

Fortes, Edward Meyer y Evans-Pritchard (1940), African Political Systerns, Oxford, Oxford University Press.

Malinowski, Bronislaw (1978) [1922], Os argonautas do Pacífico Ocidental, São Paulo, Abril Cultural.

Mauss, Marcel (2013) [1924-1925], Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, São Paulo, Cosac Naify.

  1. O projeto de pesquisa “Antropologia das tecnologias de gestão do crime, da Escola de Chicago ao Pacto Pela Paz no Estado do Maranhão” é apoiado pela Fapema por meio de Edital Universal.