Pontes audiovisuais (saudades do Brasil e do México)

Marcos H. B. Ferreira[1]
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Brasil)
Sofía Castillo Galindo[2]
Investigadora y realizadora independente

Em 2018, Marcos estava no México, em Mérida, Yucatán, para um intercâmbio de doutorado em antropologia. Como discente do PPGAS/UFG/Brasil, e estudiante huespede do CIESAS/México, ele havia recebido uma bolsa da Agência Mexicana de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AMEXID). Depois de três meses intensos no CIESAS Cidade do México, acabava de chegar ao CIESAS Peninsular. Residia agora em Mérida, no bairro histórico de Santiago. Sentia muitas saudades do Brasil, ainda sofria com seu espanhol de quatro meses no México, mas estava feliz com o clima tropical da Península de Yucatán, e animado com a possibilidade de iniciar uma etnografia sobre segregação espacial da população maya em Mérida.

No mesmo ano, Sofía havia se mudado para Mérida (igual que Marcos) para começar um novo emprego na UNAM, financiado pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CONHACYT/México), coordenando uma rede sobre centros históricos de cidades mexicanas. A mudança ao chamado “sureste mexicano” significava para ela uma nova vida, pois tudo era muito diferente da Cidade do México, onda morava antes. Curiosa e motivada por conhecer pessoas, Sofía se engajava em qualquer atividade que lhe brindasse aprendizado e onde pudesse vincular-se e fazer amizades.

Foi aí, que Marcos e Sofía se encontraram, em um curso sobre “mapeamento coletivo”, na UNAM de Mérida, em um prédio histórico belíssimo, de arquitetura neomaya[3], onde funciona o Centro Peninsular em Humanidades e Ciências Sociais (CEPHCIS). No intervalo da aula, havia uma daquelas simpáticas mesinhas de coffee break muito comuns nas universidades mexicanas. Marcos tomava um café e comia algumas galletas quando Sofía, sorridente, lhe cumprimentou em português com: “oi tudo bem, como você está?” Seu sotaque era claramente mexicano, mas ao mesmo tempo bastante misturado com o sotaque carioca, pois ela tinha morado no Rio de Janeiro muitos anos atrás. Há meses ele não ouvia português que não fosse o seu próprio, por isso sorriu surpreso. Embora Marcos precisasse praticar seu espanhol, às vezes é um alívio saber que alguém nos entende em nossa língua materna.

Por um tipo de coincidência muito comum em Mérida, Sofia era amiga de vários conhecidos de Marcos. Se aproximaram muito rapidamente e, junto com outros amigos, tiveram bons momentos conhecendo centros arqueológicos, cenotes, praias e comunidades mayas dos pueblos ao redor de Mérida.

Sofía e Marcos conversaram bastante sobre antropologia visual e sobre realizar um documentário a respeito dos “mayas contemporâneos” residentes em Mérida. Começaram a esboçar um roteiro, até que realizaram as primeiras imagens e entrevistas[4].

Certa vez, eles filmavam o Muro do Aeroporto, na Colonia Emiliano Zapata, sul de Mérida, a região de maior concentração maya na cidade. Ao tentarem se deslocar de carro até o presídio, onde fariam mais imagens, entraram em uma rua sem saída, que terminava exatamente na entrada de um parque cercado por tela. Logo ali, na porta da primeira casa, havia algumas crianças brincando. Sofía puxou algum assunto com elas. Neste momento, um senhor chegou de bicicleta e começou a conversar com eles.

Era o avô das crianças, Don Polo, um dos primeiros moradores da região. Convidou-os a sentar sob a sombra de uma pequena árvore em frente à sua casa. Contou sobre a época em que chegou ao terreno e sobre o começo da construção da casa. Como era o aeroporto antes da construção do muro. Também sobre sua infância no pueblo, sua chegada a Mérida, até a época em que trabalhou extraindo sal no litoral de Yucatán com seu irmão, com quem falava quase sempre em língua maya.

Animado com a conversa, Don Polo buscou um violão, tocou e cantou antigas canções rancheras[5]. Apesar da pouca luz, por estar já quase anoitecendo, e mesmo sem microfone, Sofia aproveitou para filmar. As crianças brincavam ao redor, posavam para a câmera. Os vizinhos passavam e cumprimentavam a todos. Até o sol se por. Foi um belo fim de tarde no sul de Mérida.

Don Polo. Fotografías: Sofía Castillo


Compré el terreno, yo lo construí poquito a poquito con mi esposa que me acaba de casar, estaba embarazada del primer bebé. Como era monte todo eso, dio el mal aire, dicen. Lo llevamos con brujos, no hicieron nada, lo llevamos a hospitales aquí en Mérida, me costó mucho, debí mucho, me endeudé mucho y no se salvó mi bebé, un varoncito. Ahorita pura niña tengo. Entonces, ese día, era monte todo lo de atrás y lo de acá igual, y no tengo tiempo para hacerlo porque, estaba yo joven trabajo hasta casi a esta hora, y cuando yo venga, un año me recomendé aquí con mi hermana, era una casita de cartón, como dice Roberto Carlos, casita de cartón; un año, pero durante ese año pensé, estoy trabajando y no tomaba, digo: “voy a hacer una casa, mi bebé ya se me fue, no quiero que suceda otra cosa, vamos a hacer”…

(Don Polo [2018]. Entrevista, Mérida)

Algumas semanas depois, Sofía e Marcos foram com as câmeras ao cemitério Xoclan, encontrar com Doña Blanca. De origem maya, ela preferia se definir com catrina, ou, em sua própria definição, maya que usa roupas não-mayas. Na infância, residiu com a mãe, a avó e a bisavó em uma típica casita maya, com teto de palha e quintal ao fundo, situada no centro de Mérida. Mas hoje reside com as filhas e netos em um dos bairros do sul da cidade.

Doña Blanca trabalhava em uma banca de flores na entrada do cemitério. Ao chegarem, ela se mostrou feliz em vê-los, disse que estava esperando há uns dias, já que Marcos havia combinado que iria, mas não especificado a data. Pediu que esperassem um pouco, enquanto organizava uma remessa de flores, dispondo-as cuidadosamente em baldes com água e expondo-as na banquinha de lona colada ao muro do cemitério.

Sofía e Marcos aproveitaram para conhecer o Cementerio Xoclan. Chamavam atenção a quantidade de sobrenomes mayas registrados nas lápides e o fato de que vários túmulos traziam também uma casita maya, em diferentes cores e tamanhos, esculpida sobre eles. Quando voltaram à banca de flores, o sol estava muito forte e havia muito barulho de carros e ônibus na rua. Doña Blanca continuava ocupada, e logo perceberam que não seria o melhor momento para uma entrevista filmada. Mas as cores intensas das flores nos baldes de água, que ela arrumava sobre a banquinha, e o olhar sereno de Doña Blanca enquanto trabalhava, fizeram com que eles ligassem as câmeras, filmando por longos minutos, ainda sem entrevistá-la. O que rendeu belas imagens e acabou fazendo com que ela se sentisse à vontade em frente às câmeras.

Doña Blanca sugeriu que fossem à sua casa na tarde de sábado, quando estaria desocupada e haveria menos barulho. Ao chegaram à sua casa, Doña Blanca disse estar empolgada com a ideia de aparecer em um filme que seria exibido no Brasil. Ela ajudou a escolher o lugar para realizarem a entrevista, o quintal, e se acomodou em uma cadeira, enquanto suas filhas e netos observavam de longe sorrindo.

Doña Blanca. Fotografías: Sofía Castillo


De mi niñez, pues la casa de allá medía 15 metros de frente, por 40 de fondo… Allá mi abuela y mi bisabuela hacían sus sembradíos. Casi nunca comprábamos nada de la calle, todo lo cosechábamos nosotros del patio, como calabaza, zanahoria, chile dulce, chile xcatik, rábano, cilantro, toda la hortaliza. Nosotros lo criábamos y comíamos también animalitos del patio, como antiguamente se conocía, como gallina de país, conejo, carnero, cerdito (…).

(Doña Blanca [jul. 2018]. Entrevista, Mérida).

Meses depois, Marcos ajudava seu amigo Carlos Goro em um evento de jazz que esse organizava em sua casa. Os eventos de jazz geravam uma renda importante para Carlos, e como ele havia sido muito generoso com Marcos, ajudando-o a resolver pequenas situações típicas da vida de um migrante, Marcos o ajudava também, como agradecimento, nesses eventos.

Em uma dessas ocasiões, enquanto um trio de jazz tocava, um grupo de jovens músicos chegou à casa, com seus instrumentos, pois haviam acabado de tocar a trabalho em algum dos diversos bares noturnos do centro de Mérida. Já quase no final do evento, depois da apresentação de jazz, eles pediram permissão a Carlos para tocarem também, embora não estivesse previsto na programação. Carlos autorizou, talvez com algum receio. Foi tudo muito rápido, quando se viu, eles já estavam no pequeno palco, com seus tambores e instrumentos de sopro, tocando cumbia e cantando sem microfone, com uma energia festiva que rompia o clima ameno do jazz de até então.

A cumbia que eles tocaram soou tão interessante que de fato acabou diluindo o brilho do jazz. Todos começaram a dançar, Marcos cuidava do bar e toda a bebida que havia foi vendida rapidamente. Entre os jovens músicos de cumbia, havia um de cabelos compridos, camisa estampada e sorriso largo, que seguidas vezes ia ao bar e comprava algumas cervejas, para ele e seus amigos. Trocou algumas palavras com Marcos, disse-lhe seu nome: Richo Can. Os dois encontraram-se depois, em diversas situações e em diferentes espaços de Mérida.

Marcos soube depois que Richo, além de músico de cumbia, era um jovem artista plástico conhecido em Mérida. Viu alguns vídeos e artigos de jornais sobre ele circulando na internet, convites para exposições, fotos de seus trabalhos e entrevistas. Em todas essas aparições, havia referências frequentes às suas origens mayas e ao pueblo em que ele nasceu, Kimbila, onde atualmente reside sua mãe, que também é artista e pratica um tipo de bordado tradicional da Península de Yucatán.

Marcos conversou com Sofía sobre a possibilidade de entrevistarem Richo para o documentário. Ela também já o conhecia, já havia visto alguns desses materiais sobre ele na internet e achou uma ótima ideia. Quando contaram a Richo sobre o documentário e o convidaram a participar, ele aceitou imediatamente. Convidou-os a visitar seu ateliê, que ficava em Colonia Esperanza, muito próximo à casa de Sofía.

Numa tarde de quarta-feira, foram fazer a entrevista filmada. No ateliê, havia muitas obras em produção, misturadas com tambores de diferentes tipos. Richo estava vestindo uma camisa estampada, com os cabelos Soltos. Organizou um canto da sala onde ele gostaria que filmassem, mudando algumas telas de lugar e rearranjando-as. Sofia terminou de montar o equipamento e fez alguns testes de som. Richo, com sua camisa estampada, sentou-se em frente à câmera e perguntou algo do tipo: “como estou?” Marcos e Sofia responderam que estava bem. Com as câmeras nos tripés e já ligadas, Sofía deu um sinal, e eles começaram a filmar.

Richo contou sobre suas lembranças da infância no pueblo e as angústias envolvidas na mudança para Mérida, a transição do pueblo à cidade, as questões identitárias que vieram à tona nesse processo. Richo se considera parte de um grupo de “mayas contemporâneos”, que conhecem e valorizam a história dos mayas da Península, ao mesmo tempo que chamam atenção para as novas maneiras de se relacionar com essa história e as novas formas de produção simbólica que essa relação tem criado.

Richo. Fotografías: Sofía Castillo.


Es algo que no puedo negar, desde siempre, desde pequeno, siempre estuve empapado de esa cultura, de las tradiciones, del lenguaje, del tipo de lenguaje que se maneja, porque el maya también tiene su particularidad. Fíjate que interesante: yo nazco en el 90, han pasado muchos años desde que la civilización maya cayó en la colonia, desde que la rebelión, la guerra de castas, han pasado muchas cosas y yo nazco en esta época, donde yo puedo ir a la red y descargar toda la información, y a través de esa información sentirme todavía más atraído, porque la historia también es importante. Desde esa retroalimentación de información, yo empiezo a relacionarlo con mi vida cotidiana, y digo: “oh sí y, me siento orgulloso y digo soy maya”. Pues, yo te digo, yo me identifico como maya, maya contemporáneo, maya actual […].

(Richo [out. 2018]. Entrevista, Mérida).

O audiovisual é um meio de comunicação e expressão que busca tecer realidades por meio de um “compartilhar sentidos” e também da empatia. Com esse documentário, que ainda está em fase de pós-produção devido à busca por financiamento, construíram-se pontes capazes de conectar e aproximar diversas experiências sensíveis. A imagem e o som agregam aspectos sensoriais da experiência humana às narrativas. Por meio das narrativas audiovisuais, podemos nos conectar sensivelmente com realidades próximas ou distantes. O audiovisual se mostrou uma ponte poderosa, capaz de conectar histórias e experiências de vida muito diversas.

Migrações do pueblo à cidade, em distintas gerações, deslocamentos do centro ao sul de Mérida, nostalgias várias, um baile de identidades culturais e categorias étnicas. Saudades de diversas fontes e formas. Entre as histórias de vida dos entrevistados e as histórias de vida dos realizadores do filme, havia algo em comum que produziu encontros, laços e afetações. Em se tratando de vidas, a saudade é algo em comum, além de toda a diversidade. Saudade é o que nos une, no Brasil ou no México.

 

Fuente: Ensaio Visual Mayas em Mérida Hoje. Fotos de Marcos Ferreira, Sofía Castillo e Cecilio Cocom.

Referências bibliográficas

Castillo, Sofía. Paisaje cinematográfico de Yucatán. Paradojas y dilemas de la descentralización. Yucatán: UADY, 2024, v.1.p.339.

Ferreira, Marcos H. B. Etni(cidades): Racismo e vida urbana entre os mayas em Mérida. Goiânia: Cegraf UFG, 2022, v.1.p.225.


  1. https://ucg.academia.edu/MarcosFerreira
  2. Doutora em Ciências Antropológicas pela UADY/México
  3. Estilo arquitectónico se caracteriza por la adaptación y reinterpretación de elementos distintivos de la arquitectura maya clásica, incorporándolos en edificios modernos tanto en términos de diseño como de simbolismo.
  4. Cecílio Cocom, Sergio Chí e o prof. Dr. Mariano Baez também participam da realização do documentário sobre “mayas em Mérida”, previsto para ser lançado em dezembro de 2024.
  5. Don Polo cantando rancheras: https://www.youtube.com/watch?v=StoE88y8j4Q&t=12s&ab_channel=Sof%C3%ADaCastillo