Alexandre Herbetta
Universidade Federal de Goiás (Brasil)
Ilustración Ichan Tecolotl con fotografía de Alexandre Herbetta
Certa vez, fui questionado por um pesquisador de Cabo Verde: “Como podemos contracolonizar falando a língua do inimigo?”. E respondi: “Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las. Por exemplo, se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus pandêmico e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento. Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização, a contracolonização… Antonio Bispo (2015)
Para o povo Guarani Mbya algumas palavras possuem um poder especial, são como palavras sagradas, devem ser expressas com cuidado e em momentos especiais, como ensina a intelectual Sandra Benites (2024). Em outros povos originários, pode se observar algo parecido. Acredito, igualmente, desde minha trajetória distinta, meu ponto de vista e perspectiva, que algumas palavras podem fazer a diferença nos processos de transformação social, efetivados em políticas interculturais.
O seguinte texto apresenta uma breve reflexão sobre a relação entre epistemologia, política e interculturalidade, colocando em diálogo dois projetos meus: “Cartografias de Interculturalidade: dores, obstáculos, alegrias, avanços e transformações epistemológicas através das políticas educativas”, realizado em uma pesquisa pós-doutoral na região mesoamericana do México, entre 2022 e 2023, e “Atualizando, juntando e esticando a universidade: considerações sobre a possibilidade de uma pluriversidade”, desenvolvido enquanto bolsista produtividade (BP) do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) na Universidade Federal de Goiás, Brasil, entre 2021 e 2023.
O primeiro projeto buscou sistematizar uma topografia possível na variação das políticas interculturais no México, desde as efetivadas por meio de governos e instituições até as realizadas desde as comunidades e famílias. A partir daí, refletir sobre as políticas públicas existentes sobre o tema e seus impactos, avanços e limites locais, regionais e nacionais. Neste contexto, além de outras questões desenvolvidas em outros textos, pude conhecer e sistematizar uma série de categorias originárias utilizadas, de alguma maneira, no planejamento e execução de diferentes projetos interculturais, como “buen vivir”, “lekil kuxlejal”, “comunalidad”, “Wejën-kajën”, “tequio pedagógico”, as quais são acessadas e constituem novos entendimentos em relação ao mundo contemporâneo, a processos de aprendizagem e às relações interétnicas.
O segundo projeto teve como objetivo compreender a complexidade das políticas de ações afirmativas implementadas na Universidade Federal de Goiás (UFG), a partir da década de 2000, relacionadas às populações indígenas, por meio da identificação, sistematização e análise de uma nova base epistêmica pluriversitária que emerge no bojo do conflituoso processo intercultural que se realiza na instituição. Categorias como “esticar”, “ajuntar”, “atualizar”, “alfabecantar” e “me increr” passam a ser centrais na atuação de agentes importantes em processos educativos e políticos, configurando novas matrizes curriculares, projetos acadêmicos e metodologias de pesquisa.
Ambos os projetos se debruçam sobre políticas interculturais desde uma perspectiva antropológica, refletindo sobre temas como autonomia, articulação de saberes, complexidade, as noções de cultura e de política. Neste texto, chamo a atenção especificamente para a emergência de novas bases epistêmicas, como um dos resultados das políticas interculturais, as quais problematizam e remodelam, especialmente, a matriz hegemônica eurocentrada, base dos processos políticos institucionais e educativos dos estados em referência, como vem sendo tratado por mim e pela professora Socorro (2018).
Para o intelectual e liderança quilombola, Antonio Bispo, o processo de transformação epistemológica é central para a mudança social. Para o autor:
Semeei as palavras biointeração, confluência, saber orgânico, saber sintético, saber circular, saber linear, colonialismo, contracolonialismo… Semeei as sementes que eram nossas e as que não eram nossas. Transformei as nossas mentes em roças e joguei uma cuia de sementes. Quando apresentei essas sementes, essas imagens, essas palavras germinantes, eu tinha a impressão de que a palavra biointeração germinaria mais do que as outras, tanto é que me esforcei muito nesse sentido. Mas o que aconteceu foi que a palavra que melhor germinou foi confluência. Não tenho dúvida de que a confluência é a energia que está nos movendo para o compartilhamento, para o reconhecimento, para o respeito. Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio, ao contrário, ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluência, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende. A confluência é uma força que rende, que aumenta, que amplia. Essa é a medida (2023, p.9).
Entendo como Antonio Bispo e como a socióloga Aymara, Silvia Rivera Cusiquanqui, a relação fundamental entre epistemologia e política, no sentido de que para haver uma transformação social é necessária uma mudança epistemológica. Seguindo essas linhas de pensamento sobre as possibilidades reais de transformação social, Cusicanqui (2018) sustenta que: “para realmente mudar as coisas, temos que mudar a episteme, a matriz da cultura” (p. 15), buscando desmontar o espírito universalista monocultural e monoepistêmico, que sustenta a estrutura de poder vigente (Pimentel; Herbetta, 2018).
Deve-se lembrar, então, como postula Spivak, sobre até que ponto há a possibilidade, por parte do Estado e de suas instituições, como a universidade, de uma escuta sensível e descolonizada, que impute valores similares aos diversos saberes. Conforme a autora, mais do que saber quem pode falar na contemporaneidade, deve-se perguntar sobre quem e como se escuta (Spivak, 2010, pp. 59-67). A partir daí, por meio de deslocamentos estruturais e de uma escuta profunda e política de outras práticas e regimes de conhecimento, é possível haver a constituição de outros mundos possíveis, como postula o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). No caso aqui tratado de outras instituições, ações, relações interétnicas, práticas e políticas interculturais.
Racismo epistêmico e justiça social
Brasil e México são, seguramente, dos países mais desiguais e violentos do mundo, fruto de sua origem colonial, de suas políticas desenvolvimentistas predatórias e excludentes e da formação de uma elite político-econômica que busca, sobretudo, manter seus privilégios. Apesar de suas diferenças, ambos os países atravessaram extensos processos de colonização que expropriaram o território das populações originárias, atacaram intensa e violentamente sistemas de conhecimento milenares/ancestrais, destruíram idiomas e linguagens e desestruturaram modos de vida tradicionais.
Vivemos hoje dinâmicas derivadas de tais processos, vinculadas a histórias colonialistas particulares. Tais processos de dominação podem ser qualificados como colonização interna (Casanova, 2007), colonialidades do saber, poder e ser (Quijano, 2005; Lander, 2005), violência epistêmica (Castro-Gomez, 2005) e/ou podem ser analisados pela teoria do controle cultural (Bonfil Batalla, 1989).
Todos esses processos estão relacionados com as imposições do Estado-Nação e a institucionalização de domínios como a terra e a educação. Tal como afirma o antropólogo mexicano Guillermo Bonfil Batalla, uma característica substantiva de toda sociedade colonial é que o grupo invasor, pertencente a uma cultura distinta, afirma ideologicamente sua superioridade imanente em todas as ordens da vida e, consequentemente, nega e exclui a cultura do colonizado (Bonfil, 1989).
Em ambos os países, nota-se igualmente a falta sistemática de uma política indigenista autônoma, efetiva e justa, o que continua gerando situações de extrema violência territorial e simbólica entre indígenas e não indígenas, em territórios demarcados e/ou em situação urbana. As políticas públicas muitas vezes buscam o que se chama integracionismo, ou seja, o aniquilamento da diferença epistêmica e ontológica, reproduzindo padrões de violência epistêmica que geram epistemicídios. O indigenismo, mesmo em suas fases pós e/ou neoindigenistas, continua estruturando uma forma específica de construir, perceber e implementar a “gestão da diversidade” (Dietz; Cortés, 2011, p.15).
Desde sempre, uma das principais lacunas no pensamento social latinoamericano é justamente a dificuldade por parte de instituições oficiais, pensadores/as, pesquisadores/as e, gestores, em assumir que o conhecimento e a crítica sobre o mundo moderno pode vir também de outras epistemologias, não ocidentais. Historicamente, o desenvolvimento da crítica latinoamericana sobre o contemporâneo e o mundo se desenvolve sobre uma matriz eurocentrada de saberes. É como se apenas desde a modernidade ocidental se pudesse epistemologicamente falar dela mesma.
Desde os primórdios de uma institucionalização de departamentos, faculdades e grupos que pensam a situação latinoamericana, os conhecimentos indígenas seguiram anulados, assim como se deu em todo o processo de invasão europeia e colonização. A escola historicista, de 1940 a 1980, por exemplo, por meio da sistematização de uma história de ideias, discutia mesmo se havia um pensamento próprio latinoamericano. Leopoldo Zea, Jose Gaos e Arturo Roy, precursores do pensamento social latino-americano, vinculados ao pensamento historicista de Ortega y Gasset, instauraram uma análise desde o território americano, na qual a discussão se pautava, sobretudo, se possuíamos uma filosofia original ou não, ignorando as epistemologias ameríndias.
Enquanto a visão padrão é organizada em termos da diferença entre o mundo moderno e o resto, eu defendo a necessidade de repensar as ciências sociais com base na consideração do processo – as conexões – que geraram essas diferenças. Isso também tem implicações para os conceitos e categorias associadas às disciplinas das ciências sociais ( Bhambra, Gurminder; Holmwood, John, 2021, p. 34)
Para Daiara Tukano, não há justiça social sem considerarmos a dimensão epistemológica,
trazendo este dilema entre paradigmas de epistemologia e Wakushe, assumindo minha identidade indígena, pontuo a necessidade de construir um discurso dentro da pesquisa de pós-graduação e de uma metodologia de Bo’eshe de aprendizado e de pesquisa tradicional, que se constitui das conversas com meus pais, minhas mães, meus tios e professores, sobre seus pensamentos, a história dos povos indígenas e a construção e as luta por seus direitos políticos (2018, p.102).
Nesse contexto, a educação intercultural passou a ser um eixo fundamental das lutas indígenas contra o colonialismo desde a década de 1980, deslocando sentidos multiculturais presentes até aquele momento. Para o antropólogo Gunther Dietz, no México, a interculturalidade constitui um campo ainda emergente tanto da pesquisa acadêmica quanto da elaboração política e institucional, bem como da intervenção pedagógica. Apesar de seu caráter recente, nesses diferentes campos acadêmicos, políticos e educacionais, o debate atual sobre os modelos, enfoques, conceitos e soluções interculturais reflete a persistência e influência decisiva de tradições profundamente enraizadas nas “políticas de identidade” nacionais, regionais e étnicas.
O problema na palavra interculturalidade
A noção de interculturalidade, que constitui eixo deste texto, busca dar conta de um intenso desafio, pois, em si mesma, é problemática. Frequentemente o termo interculturalidade é utilizado como um adjetivo que qualifica magicamente qualquer abordagem e ação que afirme reconhecer e atender à diversidade cultural, empregando um discurso de defesa do politicamente correto às custas das tradições ancestrais, costumes e conhecimentos dos chamados povos originários, como um imperativo ético-político contra as ameaças do capitalismo neoliberal (Herbetta; Baez, 2020).
A interculturalidade é classificada, inclusive, como uma nova etapa de desenvolvimento humano e projeto cultural alternativo que pressupõe um plano horizontal de comunicação, troca e cooperação de conhecimento.
Essa interculturalidade idílica, entretanto, não corresponde à experiência do mundo vivo e vivido, atravessado pelas categorias de raça, gênero, classe e sexualidade, onde as relações sociais são baseadas em fricção, conflito, negação do outro, racismo, desigualdade econômica e social, homofobia, sexismo, violência e medo” (Báez, 2018, p.41).
A noção de interculturalidade crítica emergiu como um campo de luta, construção e resistência que busca superar os limites impostos pelas políticas públicas integracionistas e assimilacionistas. Essa abordagem crítica da interculturalidade reconhece as assimetrias de poder e os conflitos inerentes às relações interculturais, e procura promover uma verdadeira transformação social a partir do diálogo horizontal e da valorização das diferenças culturais. No entanto, a interculturalidade crítica também enfrenta desafios significativos, como a resistência das instituições monoculturais e a dificuldade em implementar práticas educacionais que realmente valorizem e integrem as epistemologias indígenas. A luta pela interculturalidade crítica é, portanto, uma luta contínua e multifacetada que envolve tanto a crítica das práticas existentes quanto a construção de novas formas de conhecimento e educação.
Trata-se, então, de conceber a interculturalidade enquanto conflito, desmistificando concepções românticas e burguesas do conceito. O processo em jogo está muito longe de ser uma versão épica e harmônica de comunicação entre culturas e de transformação social; na realidade, é: tenso, ambíguo e conflitante. Segundo María Bertely, Jorge Gasché e Rossana Podestá, referências no campo da educação intercultural na América Latina:
Desejamos também esclarecer que a educação intercultural não é mais exclusividade de “nem de” “nem para” os povos indígenas, pois, embora reconheçamos que essa abordagem foi aplicada primeiramente aos contextos indígenas, assumimos que a interculturalidade é indispensável “para todos”, sejam povos indígenas e não indígenas (Bertely, M. et al., 2008, p. 29).
Jorge Gasché (2008), ainda, assinala que os profissionais que trabalham junto à questão indígena não levam em conta, de forma adequada, as particularidades inerentes a outras epistemologias. Para o autor: “é preciso reconhecer que os educadores interculturais ignoram essas propriedades sociopolíticas culturais dos povos com os quais trabalham” (Bertely; Gasché; Podesta, 2008, p. 384). Para os autores, essas circunstâncias e atitudes são muito graves, pois representam importantes obstáculos diante da possibilidade de exercício de uma democracia ativa por parte dos indígenas (Idem).
Esse processo paradoxal, revelador e conflitante, que vincula pluriepistemologias e instituições monoculturais, no campo da interculturalidade, pode também gerar interessantes transformações. Trata-se, portanto, de continuar realizando uma crítica profunda ao uso banal do conceito de interculturalidade, que é necessário significativamente porque, por um lado, se observa em múltiplas experiências a intenção de compreender a realidade indígena (e os caminhos de luta construídos coletivamente) e, ao mesmo tempo, gera desdobramentos no sentido de superação de experiências coloniais.
A potência da pluralidade no bilinguismo epistêmico
Para a professora Maria do Socorro Pimentel da Silva, precursora e referência no campo das políticas interculturais no Brasil, há um problema sério no pensamento disciplinar, dentre outras coisas, quando isola aspectos linguísticos de concepções epistemológicas, reduzindo a complexidade do mundo e reforçando o caráter colonial de nossa sociedade (2018). Para ela, sua ampla experiência com sábios e sábias indígenas mostram que assim como não há uma separação estanque entre natureza e cultura, corpo e mente, não há igualmente entre língua e conhecimento. Algumas palavras podem mesmo possuir a potência de transformação.
Nesse sentido, há uma série de experiências institucionais que apenas usam retoricamente o termo intercultural, mas seguem reproduzindo o status quo, configurando o que Walsh (2013) chama interculturalidade funcional. Há, simultaneamente, outras experiências referenciais e inovadoras em contextos mexicanos e brasileiros que apontam para avanços necessários e importantes, e que de alguma forma indicam proposições e transformações epistemológicas, como comentado, como por exemplo os Cursos de Educação Intercultural e a política de cotas no Brasil, as universidades interculturais, as universidades comunitárias, os projetos de autonomia de diversos coletivos e movimentos sociais, a experiência Zapatista no México.
Um caso interessante é o das Milpas Educativas: Laboratórios Socionaturais para o Bem Viver, do qual participei como avaliador externo, que é um projeto colaborativo dirigido a construir um modelo pedagógico intercultural multilíngue para crianças indígenas de diversas regiões. Ele foi coordenado por Maria Bertely e Stefano Sartorello, desde instituições educativas, financiado em parte pela Fundação Kellogs, e está pautado na noção de “bem viver”, problematizando a dicotomia sociedade e natureza, base da matriz epistemológica eurocentrada. O professor Sartorello destaca que no bojo de seu desenvolvimento há um processo de co-teorização intercultural, como seu núcleo gerador (seu coração, dizem os maias),
nos códigos vivos através dos quais meus colaboradores maias sintetizam os princípios da pedagogia indígena aprendida e praticada na vida e nas escolas da comunidade. Estes códigos constituem o ponto de partida para o diálogo com outras categorias – que temos chamado fusionadas – as quais expressam a união de horizontes dos diferentes sujeitos participantes (assessores kaxlanes e colaboradores indígenas), bem como com aquelas categorias teóricas produzidas por outros autores e que são as que permitem ampliar o alcance teórico da coteorização intercultural (2014, p. 15).
Por conta das atividades de meu projeto em território mexicano, ministrei atividades acadêmicas em universidades comunitárias e autônomas, como a Universidad Intercultural del Pueblo, em San Juan Guichicovi, território Ayuuk/Mie, onde tratei de processos de investigação ação participativa, com base no método dos Tema Contextuais, criado pela professora Socorro, no Curso de Educação Intercultural, do Núcleo Takinahaky de Formação Superior Indígena. Atuei também na Universidad Comunal Intercultural de Cempoaltépétl (UNICEM), ligada à rede UACO, universidades autônomas de Oaxaca/México, onde trabalhei a noção de Wejen Kajen:
Desde la filosofía ayuujk, wejën kajën, al ser nombrado, evoca la experiencia personal, pero también la experiencia de una colectividad que va aprendiendo, aprehendiendo y recreando no sólo un discurso por el que puede manifestarse el pensamiento, recrean con ello, una práctica educativa que, además debe re-conocer otras formas de conocimiento.Sistemáticamente, para el caso de Tlahuitoltepec, la reflexión sobre este proceso formativo, se ha señalado como “el acto de hacerse brotar, despertar, desenrollar, desenvolver, desenredar, desatar de la persona, de la gente” (Vargas, Vargas, Vásquez y Pérez, 2008, p. 28) en su vida (Martínez-T.; Jiménez-D.; Vásquez-G, 2019, p. 85).
Em ambos os espaços o conceito de “comunalidad” é acessado para a constituição dos planos políticos e pedagógicos e as matrizes curriculares, sendo base dos processos de ensino e aprendizagem. Antes de iniciar minhas atividades na Universidad Intercultural del Pueblo, por exemplo, recebi do diretor, professor Enrique Francisco Antonio, o texto “La Flor Comunal: Explicaciones para interpretar su contenido y comprender la importância de la vida comunal de los pueblos indios”, que tem como base o pensamento do intelectual Ayuuk, Floriberto Diaz Gomes:
La flor comunal que aquí se expone es una esquematización que intenta resumir y presentar los diferentes aspectos de la vida de las comunidades indígenas, pero no como elementos aislados sino como un conjunto de conocimientos, instituinte y actividades que le dan sentido y cohesión a la vida familiar y comunal (Monzón, 2002, p. 13).
A Revista Pihhy (www.revistapihhy.gov.br), semente em mehi jarka, língua falada pelo povo Mehi-Krahô, vinculada ao “Programa Conexão Cultura e Pensamento”, da Secretaria de Formação, Livro e Leitura/SEFLI/MinC, e idealizada pela educadora, artista e liderança Naine Terena, coordenada por mim e pelo professor Tenywaawi Tapirapé, busca estimular, no mesmo sentido, o comunitário. Ela fomenta a criação, a produção e a circulação de materiais de autoria indígena, baseados em conhecimentos plurais e ancestrais, assim como se faz em um pur, em uma roça tradicional mehi, onde sementes garantem o bem viver.
Trata-se de um projeto inovador e de vanguarda porque promove a pesquisa, o registro e a sistematização desses saberes ancestrais que foram, no violento processo histórico e colonial, apagados, adormecidos ou invisibilizados no país. Ela traz à tona pensamentos plurais e diversos sobre temas fundamentais para o mundo contemporâneo, como a sustentabilidade, a relação com a natureza, a democracia e o bem viver. Oportuniza, ainda, aos leitores e às leitoras interessados, vastos conhecimentos sobre os mundos indígenas e sobre modos diferentes de estar no mundo, deixando evidente a complexidade e o valor da pluralidade linguística e epistemológica existente no Brasil, e se colocando, desta forma, junto da histórica luta contra colonial dos povos originários, por um mundo mais sustentável, respeitoso e digno.
Da mesma maneira o projeto “Alfabecantar, cantando o Cerrado vivo”, criado a partir da reflexão do intelectual Julio Kamer Apinajé, junto ao Núcleo Takinahaky e ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFG, observando os problemas sociais e ecológicos decorrentes do esquecimento da complexa musicalidade indígena, tem como base a reflexão sobre “me increr”, termo na língua originária para a sonoridade em referência, que muito mais do que a palavra música, no sentido ocidental indica, é base para a sustentação do mundo Timbira (www.alfabecantar.com.br).
Como se pode perceber, a base epistêmica em tela aponta para novas concepções acerca do mundo e indica outras maneiras de se produzir e difundir o conhecimento. Ela aponta, ainda, a proposição de novas metodologias e dinâmicas pedagógicas, presentes nos projetos de educação intercultural. Um dos aspectos mais marcantes em sua constituição, como se mencionou acima, é a ideia de conexão entre os domínios da vida, em detrimento de uma epistemologia eurocêntrica que tende a fragmentar e isolar elementos.
Neste sentido a armação das relações é fundamental para o entendimento de outras epistemologias. O verbo “esticar”, usado constantemente por intelectuais indígenas que participam do Núcleo Takinahaky, aponta para este processo de associação entre domínios e desvela uma característica de um pensamento indígena presente, ao menos, nas ações do NTFSI, assim com postula o intelectual do povo Crew, Shawn Wilson (2008).
Considerações iniciais
Em todos estes projetos, ações e experiências entendo que a transformação epistemológica é central para políticas interculturais, de mudança social, que podem partir de governos e instituições, assim como de comunidades. Há considerável literatura sobre o tema (Luciano Baniwa, 2021; Alvaro Tukano, 2015; Barreto, 2023, dentre outros). Ressalto, ainda, que os processos detonados em tela são plenos de contradições, tensões, conflitos, avanços e limitações, de toda forma promovendo deslocamentos e problematizações importantes às ações e instituições. E que a justiça epistemológica é condição fundamental para a reparação social.
De outra forma, qual seja, imaginar que a presença de contingentes populacionais indígenas em instituições de ensino historicamente excludentes e elitistas não geraria problematizações e transformações nos regimes de conhecimento e nas práticas institucionais seria uma afirmação exageradamente etnocêntrica. Para Sandra Benites, há palavras bonitas e palavras a serem evitadas.
Desse modo, eu pude perceber que a palavra nhe’ẽ é entendida por todos os Guarani como sagrada quando se trata de um ser espírito e um sentimento (py’a). Existem nhe’ẽ porã, nhe’ẽ wai, nhe’ẽ kangy, nhe’ẽ mbaraete, nhe’ẽ katu, nhe’ẽ gatu e assim por diante. Nhe’ẽ porã é “palavra boa, bonita, linda”; é muito usada para dar conselho, para ser dirigida à pessoa que está emocionalmente abalada ou com raiva. Nhe’ẽ wai é “palavra feia, ruim, agressiva” e é usada geralmente pela pessoa que não está bem (2024).
Na mesma direção, o intelectual Tuxá, Felipe Sotto Cruz (2017) afirma ser preciso uma verdadeira abertura epistêmica, desfazendo a episteme que está atualmente em curso nas universidades, que é altamente monolítica, isto é, fechada tanto para outras formas de conhecimento como para o próprio Outro (p. 97). É, também, como afirma Viveiros de Castro sobre o equívoco de se imaginar que a ciência ocidental, se constitui apenas projetando o “ocidente” sobre “outras populações”, que se tornariam assim “ficções da imaginação ocidental” (2015, p. 21). Para o autor, “supor que todo discurso europeu sobre os povos de tradição não europeia só serve para iluminar nossas representações do outro é fazer de um certo pós-colonialismo teórico a manifestação mais perversa do etnocentrismo” (Ibidem).
Se outras palavras, categorias, práticas e conceitos já constituem, como se vê, mesmo que muitas vezes de maneira invisibilizada, o conhecimento dito “ocidental” e as instituições, noto a importância na sistematização de um novo repertório conceitual para se pensar a educação, a universidade e a política, afastando-me das amarras disciplinares. Assim como Rufino,
parto da defesa da não redenção do colonialismo, problematizando a continuidade de seus efeitos na formação de um mundo múltiplo e inacabado, lido, aqui, a partir da disponibilidade conceitual assente na encruzilhada de Exu ‒ que emerge, assim, como símbolo de um projeto político/poético/educativo antirracista/decolonial (2017, p.9).
Abre-se, então, a possibilidade de consolidação de espaços pluriepistêmicos que subvertem à colonialidade do saber, processo comum em muitos espaços acadêmicos – e não acadêmicos. Conforme Oyewumi, “as sociedades que experimentaram a colonização sofreram muitos efeitos negativos, alguns psicológicos, alguns linguísticos e alguns intelectuais. Mas nenhum talvez tenha sido menos estudado do que como a colonização subjuga o conhecimento e marginaliza epistemes locais. (2016, p. 1).
Busco, enfim, tratar da interculturalidade crítica “como um pensamento outro que se afirma na América Latina como um projeto alternativo de natureza ética, ontológica, epistêmica e política” (Walsh, 2013, p. 74). Nas palavras de Mignolo, devemos “buscar um pensamento outro que seja, precisamente, o pensamento que decorre da exterioridade colonial e da colonialidade do Ser e a necessidade de contemplar a descolonização como figura central na imaginação de futuros possíveis” (Mignolo, 2001, p. 37).
A justiça epistemológica é central para qualquer sociologia reparadora. Isso envolve o reconhecimento das reivindicações de conhecimento dos outros, tanto em termos de respeito quanto de resposta (re) construtiva; seja em termos de discordância ou concordância. Uma justiça epistemológica mais aprofundada não pode ser entendida fora de um compromisso com a justiça de forma mais ampla. Aqui, estou especificamente defendendo reparações materiais como a encarnação prática de uma sociologia reparadora (Bhambra; Holmwood, 2021, p.18).
Acredito, por fim, que a partir destas transformações seja possível a constituição de novas práticas de conhecimento e dinâmicas de relação, fundamentais para instituições mais plurais, democráticas e inclusivas. Para que este espaço, transformado, possa fazer jus aos desafios do mundo contemporâneo em relação a temas como sustentabilidade, política, saúde, violência, colonialidade, justiça social e epistêmica.
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