Sergio Baptista da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)
Ilustración Ichan Tecolotl.
Nos anos de 2017, 2018 e 2019, aconteceu um importante intercâmbio entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), através do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS), e o Centro de Investigações e Estudos Superiores em Antropologia Social (CIESAS), no âmbito do Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, em sua chamada de 2014, mas que foi implementada apenas no segundo semestre de 2017.
Por intermédio do Edital n. 02-2014, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação – Secadi/MEC e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES tornaram públicas as inscrições para a seleção de propostas de projetos conjuntos de pesquisa entre instituições brasileiras e estrangeiras com modalidades de graduação sanduíche e doutorado sanduíche, no âmbito do Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, criado pela Portaria MEC nº 1.129, de 17 de novembro de 2013.
Conforme esta portaria, o Programa foi criado para atender preferencialmente a candidatos autodeclarados pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação.
O diálogo Brasil-México
A cooperação permitiu um fluxo sistemático de alunos da UFRGS, com as características acima descritas, preferencialmente alunos indígenas e afrodescendentes que entraram na Universidade através do sistema de reserva de vagas ou de cotas, objetivando proporcionar-lhes uma experiência única de aprendizado e qualificação, proporcionando uma vivência internacional, equivalência de créditos, aprofundamento de aprendizado da(s) língua(s) e discussão acadêmica de temas de pesquisa comuns na área de interculturalidade e patrimônio epistemológico, direcionando esta formação para uma compreensão comparativa das sociedades brasileira e mexicana, na medida em que as duas enfrentam os desafios da diversidade cultural e de desigualdades sociais. Nesta perspectiva, procurou-se desenvolver uma coorte de alunos com experiência internacional, que estão dando continuidade às suas carreiras como cientistas sociais e antropólogos com condições de fazer contribuições significativas para a compreensão destes temas, e que manterão relações colaborativas e uma perspectiva internacional em suas futuras pesquisas.
Neste contexto e com estes objetivos, iniciou-se em 2017 o intercâmbio acadêmico entre o PPGAS-UFRGS e o CIESAS com sua proposta aprovada. O projeto intitulado Diálogos interculturais: patrimônios epistemológicos ameríndios e afrodescenentes oportunizou a realização de atividades de ensino, de pesquisa, de mobilidade de docentes e discentes, e principalmente a formação de uma rede de pesquisa entre Brasil e México, privilegiando as áreas temáticas da Antropologia, da Etnologia Indígena e da Antropologia das populações afro-brasileiras. Foi coordenado por Sergio Baptista da Silva (PPGAS-UFRGS) e por Mariano Báez Landa (CIESAS Golfo).
Estas duas instituições possuem longa tradição e reconhecimento por estudos desenvolvidos nos eixos centrais que foram propostos no projeto. O da interculturalidade, justificou-se pela experiência e interesse de pesquisa dos professores envolvidos e pela demanda crescente de alunos, sobretudo de alunos indígenas e afrodescendentes, para receberem uma formação em temáticas relativas a questões de identidade étnica e o exercício da cidadania.
Também foram fundamentais para as atividades realizadas no intercâmbio, os eixos da intercientificidade e registro, discussão e valorização das singularidades sócio-cosmo-ontológicas dos grupos estudados.
Os eixos da interculturalidade e da diversidade cultural de patrimônios epistemológicos permitiu a reflexão sobre políticas públicas em relação a minorias, e a capacitação para elaboração de políticas a elas dirigidas, o que sempre foi uma demanda crescente de indígenas e afro-brasileiros estudantes de graduação e de pós-graduação, bem como de alunos não pertencentes a estas minorias, mas com interesse de pesquisa e atuação nestes temas e que são originários de cursos de graduação e de pós-graduação da UFRGS, em todas as áreas do conhecimento, especialmente nas Ciências Sociais, na Antropologia, na História e na Educação.
Foi dentre este contingente de alunos da UFRGS que amadureceram as candidaturas de projetos individuais para o intercâmbio, o que oportunizou o desenvolvimento de estudos que empreenderam reflexões sobre, por exemplo, educação intercultural, relações étnico-raciais e patrimônios epistemológicos de coletivos particulares, tanto no Brasil quanto no México.
Ambos os países são sociedades multi-étnicas e multi-culturais caracterizadas por profundas diversidades e desigualdades. Os dois países compartilham questões comuns, resultado de uma história colonial baseada no trabalho escravo, diversos processos migratórios, minorias étnicas, disputa de territorialidades e identidades culturais. Neste sentido, pesquisadores de ambos os países têm se dedicado a estas questões, o que ensejou aprendizados e trocas de experiências a respeito de diferentes politicas de inclusão social.
Da mesma forma, os diálogos entre alunos e professores de ambas instituições foram possíveis em relação à temática da gestão territorial e ambiental de terras indígenas e quilombolas, à sustentabilidade socioambiental, à educação intercultural e ao patrimônio cultural, refletindo sobre as especificidades destas populações na relação com seus saberes e patrimônios epistemológicos e culturais, através de pesquisas colaborativas entre estes acadêmicos e intelectuais indígenas e quilombolas, principalmente lideranças políticas, xamãs, anciões, cineastas, músicos e professores indígenas, entre outros, favorecendo o diálogo com diferentes políticas públicas setoriais.
O intercâmbio acadêmico entre PPGAS-UFRGS e CIESAS ensejou diálogos que impactaram o meio acadêmico, principalmante por fomentar e apoiar a realização de diálogos entre saberes que possibilitaram formações acadêmicas diferenciadas de graduandos e pós-graduandos.
Assim, com este intercâmbio PPGAS-UFRGS/CIESAS, iniciou-se um fértil campo de estudos de caso sobre minorias, com possibilidades comparativas entre Brasil e México, comportando trabalhos em torno de temas especialmente interessantes para os dois grupos acadêmicos que apresentaram o projeto, dentre eles: 1. Educação intercultural e políticas públicas; 2. Educação escolar indígena; 3. Formação de indígenas e afrodescendentes professores e pesquisadores; 4. Produção intelectual indígena e afrodescendente; 5. Processos educacionais singulares; 6. Ações afirmativas na Universidade e desigualdades étnico-raciais; 7. Protagonismo indígena, modos próprios de fazer ciência e constituir-se intelectual; 8. Produção de conhecimentos, memórias, temporalidades, processos próprios de aprendizagem; 9. Patrimônio epistemológico e cultural; 10. Simetrização de saberes, intercientificidade; 11. Ações didático-pedagógicas sobre o enfrentamento do racismo e formas de elaboração de conhecimento sobre a afrodescendência e povos ameríndios.
Como se verá mais adiante, o intercâmbio propiciou a instrumentalização para os estudantes que participaram do projeto produzirem uma análise crítica e reflexiva da diversidade cultural, epistemológica e das desigualdades sociais. Esta reflexividade possibilitou uma atuação mais efetiva sobre conflitos sociais que são constituintes de sociedades possuidoras de grandes diversidades e de populações historicamente excluídas. A compreensão da natureza e consequências de tais condições sociais, históricas, culturais e cosmo-ontológicas foram fundamentais para o desenvolvimento de estudantes, no sentido de se tornarem acadêmicos bem formados e também cidadãos em seus próprios países e no mundo. As noções de interculturalidade e patrimônio epistemológico apontam para características sócio-histórico-culturais de gestão política de Estados-nacionais historicamente multi-étnicos, onde diferentes grupos convivem e buscam construir uma vida comum, ao mesmo tempo que culturas e epistemologias originais são reafirmadas no cenário de embates pela legitimação de direitos à singularidade e para a implementação de políticas afirmativas em vários contextos.
A estrutura didático-pedagógica do intercâmbio previu o reconhecimento de créditos realizados no CIESAS nos níveis de graduação, mestrado e doutorado, além de proporcionar aconselhamento acadêmico e avaliação dos estudantes através de orientadores mexicanos, que, sempre que oportuno e adequado, envolveram os alunos brasileiros diretamente em suas atividades de pesquisa.
Já do ponto de vista acadêmico, é de se detacar a orientação e a acolhida oferecidas aos estudantes pela instituição mexicana e seus profissionas.
Os intercambistas, seus projetos e seus orientadores mexicanos
A cooperação México-Brasil em tela nos seus três anos de operação (2017 a 2019) propiciou o intercâmbio de três estudantes brasileiros de doutorado e seis de graduação.
Cledes Markus, a época doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, sob a orientação de Maria Aparecida Bergamaschi, desenvolveu, de agosto a novembro de 2017, o projeto de pesquisa intitulado Educação intercultural e epistemologias ameríndias, que enfocou as práticas e políticas públicas relacionadas à educação intercultural no México, especialmente as perspectivas e metodologias que orientam a elaboração de materiais didáticos e propostas de estudo sobre as histórias, culturas, epistemologias e ciências ameríndias voltadas para a educação escolar. Foi orientada no México por Mariano Baéz Landa (CIESAS-Golfo).
No período de agosto de 2018 a janeiro de 2019, a então doutoranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social na UFRGS, Ana Milena Horta Prieto, orientadada por Sergio Baptista da Silva (PPGAS-UFRGS), trabalhou no seu projeto Território, corpo e pessoa entre os Arhuaco (Iku) da Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia, com a assessoria acadêmica de Rosalva Aida Hernández Castillo (CIESAS Ciudad de México). No seu projeto, levou em conta o estatuto ontológico dos “seres da natureza”, apresentado na lei de origem iku, que além de lhes outorgar subjetividade similar a dos humanos, concebe o pertencimento de seres humanos e extra-humanos a um mesmo coletivo. Com esta política cosmo-ontológica como ponto de partida, a bolsista partiu para o entendimento do território como um “tecido de relações entre seres”.
De abril a dezembro de 2019, a na época doutoranda Roberta Rosa Portugal, autodeclarada negra, do Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS, com a orientação de Solange Mittmann, desenvolveu seu projeto Um olhar sobre Frida Kahlo: as práticas zapotecas e as releituras de sua obra, com a assessoria acadêmica de Ricardo Pérez Montfort (CIESAS-Ciudad de México) e coorientação de Julieta Haidar Esperidiao (Escola Nacional de Antropologia e História-MX). A bolsista, com seu estudo, colaborou para ampliar os conhecimentos sobre a influência da tradição zapoteca na vida e obra da pintora mexicana e nas releituras de sus trabalhos.
Com relação aos bolsistas de graduação, a cooperação Brasil-México proporcionou o intercâmbio de seis estudantes.
De agosto a dezembro de 2017, Leocir Muller Ribeiro, autodeclarado indígena kaingang, na época graduando em Fisioterapia na UFRGS, desenvolveu, sob a orientação de Regina Martínez Casa (CIESAS-Ciudad de Mexico), o projeto Comparação do estilo e qualidade de vida entre indígenas estudantes universitários da UFRGS – Brasil e indígenas estudantes universitários do CIESAS), México. Um estudo transversal.
Liliana Dantas da Silva, na época graduanda em Psicologia na UFRGS e autodeclarada negra, desenvolveu de agosto de 2017 a julho de 2018 o projeto Os impactos do racismo na saúde mental de povos ameríndios e afrodescendentes, sob a orientação de Regina Martínez Casas (CIESAS Ciudad de México). No contexto mexicano, a bolsista analisou, sob a perspectiva da Psicologia Social Crítica, o racismo, visto como um problema estrutural, operando em situações sócio-culturais diferentes do brasileiro, mas que, sem dúvida, incide tanto sobre a população indígena como em relação às comunidades negras.
Ivanilde da Silva, autodeclarada indígena mbya-guarani e então graduanda de Pedagogia na UFRGS, de maio a setembro de 2018, trabalhou, sob a orientação de Mariano Báez Landa (CIESAS Golfo), no seu projeto de pesquisa intitulado Troca de experiências e saberes entre estudantes indígenas do ensino superior do México e do Brasil, durante o qual coletou e analisou testemunhos de indígenas estudantes de universidades interculturais e convencionais no México.
No período de agosto de 2018 a julho de 2019, Márcio dos Santos Maria, autodeclarado negro e então estudante de Ciências Sociais na UFRGS, desenvolveu um plano de estudos, orientado por Mariano Baéz Landa (CIESAS Golfo), no qual o bolsista fez trabalho de campo e analisou o movimento hip-hop no México, com particular atenção às redes que se formam através dele, focando na sua atuação, locais e efeitos.
Mariana Pereira Pedroso, autodeclarada negra e à época estudante de Administração na UFRGS, de abril a dezembro de 2019, com a assessoria acadêmica de Patricia Eugenia Zamudio Grave (CIESAS Golfo), trabalhou com A diáspora senegalesa: comércio informal, religiosidade e cultura nas ruas de Porto Alegre e da Cidade do México, tendo investigado a experiência laboral e cultural destes imigrantes africanos.
E por fim, Aline de Moura Rodrigues, autodeclarada negra e então graduanda em Ciências Sociais na UFRGS, que de abril a dezembro de 2019, sob a orientação de Mónica Carrasco Gómez (CIESAS Sureste), com seu projeto intitulado Interseccionalidades e cultura política: etnografia das estratégias de Assistência Social em contextos de amefricanidade latente, estudou estratégias e políticas de assistência social a coletivos indígenas e afrodescendentes. Igualmente, a bolsista investigou as estratégias próprias destes coletivos diferenciados na defensa de seus direitos.
Finalmente, não poderia deixar de registrar que na Ciudad de México vários intercambistas brasileiros foram recebidos e acolhidos afetuosamente por Israel Jurado Zapata, da Universidad Nacional Autónoma do México.
Alguns resultados da cooperação PPGAS-UFRGS e CIESAS
Em síntese, a cooperação internacional entre o PPGAS-UFRGS e o CIESAS oportunizou três missões de trabalho do coordenador brasileiro (em 2017, 2018 e 2019), onde foi possível a realização de reuniões de apresentação, planejamento e avaliação do projeto, de integração com docentes e discentes, e de participação em eventos acadêmicos.
Como visto no ítem anterior, o intercâmbio Diálogos interculturais: patrimônios epistemológicos ameríndios e afrodescenentes promoveu nove missões de estudo de discentes brasileiros, sendo três de bolsistas de doutorado sanduíche e seis de bolsistas de graduação sanduíche.
Durante o desenvolvimento desta cooperação internacional, momentos importantes do ponto de vista acadêmico e da integração dos bolsistas brasileiros entre si e em relação à instituição CIESAS e seus profissionais foram os três Colóquios México-Brasil: Programa Abdias Nascimento, em 2017, 2018 e 2019, organizados na sede Golfo do CIESAS, nos quais o intercâmbio foi apresentado e avaliado e onde foram apresentados os resultados das pesquisas empreendidas pelos seus participantes.
Ao final de seus períodos de bolsa, todos os intercambistas tornaram públicos seus relatórios conclusivos de campo e de pesquisa.
É importante frisar que o intercâmbio oportunizou a estes pesquisadores e alunos uma reflexão sobre políticas públicas relacionadas às minorias indígena e negra, capacitando-os para uma discussão mais qualificada e consistente quanto a elas e para o enfrentamento dos desafios da diversidade cultural e das desigualdades sociais, tanto no Brasil como no México.
A modo de conclusão, foram plenamente satisfatórios os resultados desta cooperação PPGAS-UFRGS e CIESAS. O projeto propiciou qualificação acadêmica de estudantes indígenas, negros e pesquisadores ligados às temáticas da diversidade sociocultural, proporcionando aos estudantes brasileiros uma excelente experiência internacional de formação acadêmica e cultural, tendo colocado em diálogo estudantes e pesquisadores brasileiros e mexicanos que lidam com as temáticas da promoção da igualdade racial, da valorização das especificidades socioculturais e cosmo-ontológicas e da diversidade de patrimônios epistemológicos.