As duas faces de um “papelote”: a modelagem do traficante e usuário

Carla Regina Pereira Vieira[1]


Fuente: Imagen de audreysteenhaut en Pixabay.


No segundo semestre de 2017, Pedro Martins (nome fictício para preservar a identidade) foi preso por trazer consigo uma porção avulsa de maconha de quase quarenta gramas. Na ocasião também foi encontrado em seu poder a quantia de R$ 30.00 (trinta reais). Segundo relatado em sua audiência, policiais realizavam rondas de rotina, quando avistaram duas pessoas em atitude suspeita e notaram que Pedro havia dispensado um objeto que estava em sua mão, o qual foi constatado se tratar de maconha, nada sendo apreendido com a outra pessoa que o acompanhava. Nessa audiência, ele afirmou ser o dono da droga e usuário de maconha.

Na Lei 11.343/2006, a figura do usuário de drogas é constituída e modelada de modo diferente a do traficante, uma vez que usuário é aquele cuja droga se destina ao consumo pessoal e é submetido a penas alternativas à prisão. Por outro lado, o traficante é o criminoso, punido com reclusão, como pode ser analisado nos artigos da citada lei:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1 500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Três observações podem ser feitas a partir da leitura desses dispositivos: o nítido gerenciamento da saúde dos indivíduos, liberdade interpretativa e similitude verbal que caracteriza usuários e traficantes (adquirir, ter em depósito, guardar, transportar e trazer consigo, ações comuns ao usuário e traficante). Ou seja, o molde não está fechado por conta do § 2º do art. 2, o qual é revestido de subjetividade interpretativa para qualificar a destinação da substância entorpecente, não existindo uma delimitação da quantia para determinar se a pessoa trafica ou se é usuária.

Minha inquietação parte de quase dois anos assistindo audiências, abertas ao público, que tratavam do tráfico de drogas em São Luís/MA. Entre 2017 e 2019, eu me encontrava na condição de estagiária do Ministério Público (Instituição que zela pela defesa da ordem jurídica, dos interesses da sociedade e pela observância da Constituição). Ao assistir essas audiências, uma questão me chamou a atenção: na prática, as circunstâncias que delimitariam se a droga é destinada ao consumo pessoal ou ao comércio não seriam parecidas?

O caminho que percorri com intuito de elucidar essa questão envolve a desnaturalização do problema, o levantamento de alguns marcadores históricos que antecederam a vigência da Lei 11.343/2006 e elementos que aproximam a caracterização do usuário e do traficante. Com a primeira, o tráfico de drogas é analisado como um problema construído e aparentemente administrado através de norma jurídica e não como uma ameaça identificada e controlada pelo Estado. Com o segundo, vê-se que a seletividade penal de negros e pobres que usavam maconha, cocaína e heroína foi o suporte inicial da criminalização das drogas, sendo o uso o marco inicial de reprovação moral. Por fim, o terceiro possibilita visualizar elementos que, nas situações práticas, aproximam a caracterização de traficantes e usuários.

A desnaturalização do problema

Quando uma situação ou uma prática é um problema? Acredito que isso ocorre quando passa pelo crivo da interpretação humana, que avalia determinado acontecimento como maléfico à sociedade ou ao convívio social. Partindo dessa noção, é possível compreender o problema como algo criado e não natural, uma vez que é resultado de uma descrição e valoração.

Clifford (2016) ao trabalhar verdades parciais, traz os textos etnográficos como ficções verdadeiras, sob as quais a história atua sem que os autores tenham pleno controle, sem esquecer, contudo, que as verdades etnográficas são parciais e incompletas. Tendo em vista, a etnografia situar-se entre poderosos sistemas de significação.

Marques y Villela (2017) também trilham essa caminho da atribuição do significado e do valor ao analisarem a política e a família no sertão, enquanto concepções práticas, remetendo a um campo de escolha e invenção. Desse modo, é possível pensar com a colaboração desses autores o tráfico de drogas e o seu estudo não como um problema dado, mas sim como produto de uma construção humana, no sentido de algo feito e modelado.

O que eu sugiro é que essa ficção, de vender e consumir determinadas substâncias como algo maléfico ao indivíduo e ao corpo social, não tem a sua legitimidade questionada exatamente por não ser vista e compreendida como constituída e valorada. Assim como, o Estado e seu regramento jurídico, dentro de uma democracia, gozam de legitimidade e defendem a ideia do sujeito ideal (Lemões, 2019), qual seja: do sujeito recuperado, incluído, transformado, que precisou da intervenção estatal para exercer sua função social integrada às demais condutas e que respeita a norma.

Com Elias (1994) é possível chegar à compreensão que esse indivíduo, que não se ajustou ao ideal estatal desejado, não corporificou corretamente o modelo de autocontrole, cedendo aos seus impulsos ou paixões. Isso ocorre em função da construção que desde a infância uma pessoa passa por um processo de internalização comportamental. Nesse sentido, não é necessário que o Estado atue de forma direta, diária e violenta para que alguém tenha a noção de que vender drogas é crime. Também não é necessário estudar o Código Penal para saber disso. O curioso é que o conhecimento está ali, ele veio de algum lugar, mas não sabemos bem de onde.

O Estado não precisa atuar diretamente, num primeiro momento, nessa disciplina de mentes e corpos (Foucault, 2008), porque instituições como família, igreja e escola já fazem isso, através do espelhamento de práticas e reprodução de falas que estão alinhadas ao bom comportamento e ao respeito às leis.

Entretanto, algumas pessoas que desrespeitam uma norma, o fazem de forma consciente e o ato é incorporado ao seu cotidiano como uma atividade econômica ou um investimento do qual se espera determinado lucro (Aquino, 2010). Os atores desse cenário não problematizam o fato de estarem traficando.

E pude observar isso nas falas dos acusados durante as audiências. O conhecimento de uma prática qualificada como tráfico nunca esteve em questão em nenhuma das audiências que assisti. Independentemente da condição social ou nível de escolaridade, o desconhecimento da norma nunca foi algo colocado, nem mesmo como possível desculpa para descumpri-la. Assim como não havia a problematização do ato como crime por aqueles que se assumiam como traficantes.

Desse modo, o que proponho é que o qualificado como criminoso passou por um processo de corporificação e que ao desobedecer uma norma o faz de certo modo consciente, por ter conhecimento da ilicitude de seu ato.

Alguns marcadores no cenário de proibição

Ao comércio de drogas no Brasil foi atribuído não só o sentimento de uma prática que atenta contra a moralidade de uma sociedade, como também uma cobertura jurídica, que coloca a compra e venda de substâncias, previamente listadas pela Portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no campo da ilegalidade. Essa compra (quando não é única e exclusivamente destinada ao consumo pessoal) e venda foram qualificadas como tráfico, que durante anos se tornou um dos maiores problemas identificados pelo Estado brasileiro e que consegue se adaptar às adversidades como apreensões do material, prisões e crises econômicas, não importando o tempo, lugar ou situação financeira do país.

A ideia do tráfico de drogas é como um bolo muito bonito que se encontra disposto na vitrine de uma confeitaria conceituada: os clientes dessa confeitaria não questionam quais ingredientes foram usados, não estão interessados em saber se os materiais estavam na validade e nem as condições de salubridade da cozinha durante a confecção. O motivo? A vitrine e o ambiente em que os alimentos podem ser consumidos na confeitaria estavam limpos, além disso, o bolo estava gostoso, o cliente não precisa conhecer todo o processo, ele só tem que comprar o bolo e uma vez que a vigilância sanitária já vistoriou o lugar, o cliente não tem com o que se preocupar.

A imagem do tráfico pode seguir com muita facilidade essa mesma linha. As pessoas compram essa ideia sem se perguntarem como ela foi feita, em que condições, de onde ela veio. Não há dúvidas ou hesitações. Afinal, o comércio de drogas não é um sério problema para a saúde e segurança pública? As figuras do traficante e do usuário não ferem a moralidade em algum grau na nossa sociedade? Não estaria o Estado mais do que correto em proibir a venda de determinadas substâncias que são perigosas e causam dependência, porque afinal, o Estado sabe o que faz? O Estado sabe o que é melhor para os seus cidadãos. Que Estado não proibiria uma prática que é responsável pelo aumento da violência em suas cidades?

São essas as perguntas que marcam um cenário de vitrine. É como se o cenário fosse esse, desde sempre, sem uma história, mas com a ideia de que a lei deve ser obedecida, sem espaço para questionar. Existem substâncias que não devem ser comercializadas e consumidas, porque causam dependência e degradam a saúde do indivíduo, impactando consideravelmente no sistema nervoso. Elas estão previstas na Portaria da ANVISA, a qual é subordinada ao Ministério da Saúde, e passa por atualizações. Mas o que há na “cozinha desse cenário”?

É provável que uma reconstrução histórica retilínea seja inviável, mas gostaria de destacar alguns marcadores que nos ajudariam a tentar compreender um pouco melhor como esse cenário proibitivo (construído) está relacionado à aplicação da Lei 11.343/2006.

Inicialmente o Brasil foi palco de um cenário marcado por momentos de restrição, permissão do uso de drogas e seletividade de pessoas que estavam sujeitas à punição ou recriminação moral. No trecho abaixo pode ser observado o panorama em que uma lei foi criada com intuito de punir grupos específicos que consumiam maconha:

O Rio de Janeiro foi, por exemplo, a primeira cidade nas Américas a proibir o uso de maconha. Uma lei de 1830 proibia o uso da erva num esforço para reprimir grupos de negros, escravos e ex-escravos, que circulavam pela cidade, desafiando as autoridades públicas e provocando temor na minoria branca (Rodrigues 2014). Quando o êxodo rural levou milhares de brasileiros para os novos centros industriais, hábitos como o de fumar maconha os acompanharam, aumentando o estigma que já pesava sobre essas populações migrantes, pobres e de escuro tom de pele (Labate; Rodrigues, 2018: 81).

Labate y Rodrigues (2018) chamam atenção para o fato de que enquanto o rechaço social relacionado à maconha remontava ao uso por negros e indígenas, o consumo da heroína e cocaína no início do século XX era permitido e restrito ao círculo sofisticado frequentado pela elite intelectual e econômica. Contudo, começou a ser repreendido com a circulação de notícias sobre jovens prostitutas que conforme discurso da época estavam se degradando no vício e na luxúria (jovens estas que atendiam justamente essa elite consumidora).

É possível notar que a partir do momento que as classes menos abastadas passam a consumir substâncias psicotrópicas, principalmente durante a transição da saída do campo à chegada e crescimento dos centros urbanos há a consubstanciação de repúdio às drogas, ou seja, a concentração da reprovação associada à discriminação. Uma vez combinado a políticas sanitárias, à disciplinarização de espaços urbanos e à salubridade das cidades, esse rechaço às drogas seleciona quem é o inimigo, o criminoso, o degradado, aquele que representa uma ameaça aos bons costumes.

Aqui é perceptível que o problema das drogas não foi algo identificado, mas constituído. Mesmo com o Estado Democrático de Direito, com uma Constituição garantista, é possível pensar com Herzfeld (2006) que estereótipos como imagens retóricas em uso representam preconceitos e exclusões estabelecidos, há problema e protagonistas (usuários e traficantes) estigmatizados.

Conforme os relatos que presenciei ao longo de dois anos em que acompanhei as audiências sobre o tráfico, era muito comum ocorrer a abordagem antes ou após a compra da droga, poucas eram as situações em que os indivíduos se encontravam com muito material entorpecente. Por isso, a maioria dos presos figurava justamente nesse ponto de intersecção, em que as ações reportadas poderiam ser interpretadas como indicativo tanto de uso quanto de tráfico.

Nesse ponto alguns detalhes devem ser esclarecidos: maconha e crack eram as substâncias mais apreendidas. Ambos possuem baixo valor, sendo que a primeira geralmente costumava ser comercializada por R$10,00 (dez reais) e o segundo por R$5,00 (cinco reais). Assim o comércio dos papelotes/trouxinhas costumava ocorrer com cédulas trocadas. Disso decorre que o momento da abordagem (antes ou depois da compra do entorpecente) também não era um elemento de esclarecimento, em razão da percepção das características de quem acabou de comprar ou vender serem semelhantes.

Observa-se que antes da compra e venda:

  1. Quem vai comprar está com as cédulas trocadas;
  2. Quem vende está com os papelotes;

Após a compra e venda:

  1. Quem comprou traz consigo os papelotes;
  2. Quem vendeu traz consigo as cédulas trocadas;

Claro que o uso de cartão de crédito e delivery faziam e fazem parte desse cenário, mas a compra no bairro e com uso de dinheiro era preponderante. Outra questão é que os compradores não andavam apenas com o dinheiro contado da droga. Desse modo em uma abordagem era comum ser encontrado tanto dinheiro, como droga. É por isso que relatos dos vizinhos e denúncias anônimas acabavam conferindo um peso grande na identificação e prisão dos traficantes. Afinal, constituíam “divisores de águas” na modelagem, ou seja, diante das situações de similaridade, que aproximavam a caracterização do traficante da figura do usuário, elas eram o elemento diferenciador.

Desse modo, cada vez que as circunstâncias, que caracterizam e possibilitam a identificação de traficantes e usuários, se aproximam a ponto de se tornarem praticamente indistintas, cabe aos agentes estatais introduzir, desenvolver e se valerem de novas formas de identificação legitimadas. Já que a criminalização das drogas foi responsável pela criação do tráfico de entorpecentes, do traficante e usuário como categorias penais e do problema de segurança pública, cabe ao Estado solucionar e gerenciar esse cenário no qual ele também atuou.

Bibliografia

Aquino, Jania Perla Diógenes de (2010), “Redes e conexões parciais nos assaltos contra instituições financeiras”, em DILEMAS. Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 3. OUT/NOV/DEZ, pp. 75-100.

Brasil. Lei Ordinária nº 11.343 de 23 de agosto de 2006.

Clifford, James (2016), “Introdução: Verdades parciais”, em James Clifford, George Marcus, George (orgs.), “A escrita da cultura: poética e política da etnografia”, Rio de Janeiro, EDUERJ e Papéis Selvagens, 2016. pp. 31-61.

ELIAS, Norbert (1994), O Processo Civilizador, Rio de Janeiro, Zahar, v. 02, pp. 193-206.

Foucault, Michel (2008), Nascimento da biopolítica curso no Collège de France (1978-1979), São Paulo, Martins Fontes.

Herzfeld, Michael (2016), A produção social da indiferença, Petrópolis, Vozes, pp. 11-24; 73-96.

Labate, Beatriz Caiuby y Thiago Rodrigues, (2018), “Proibição e guerra às drogas nas américas: um enfoque analítico”, em Beatriz Caiuby Labate y Thiago Rodrigues (orgs.), Política de drogas no Brasil: conflitos e alternativas, São Paulo, Mercado de Letras, pp. 69-103.

Lemões, Tiago (2019), “A máquina de guerra contra o Estado tóxico: captura e conjuração estatal na luta pelos direitos da população de rua”, em Anuário Antropológico, vol. 44, núm. 1, pp. 189-216.

Marques, Ana Claudia Duarte Rocha; Jorge Luiz Mattar Villela (2017), “O sangue e a política: sobre a produção de família nas disputas eleitorais no sertão de Pernambuco”, em Revista Pós-Ciências Sociais, vol. 14, pp. 33-51.

  1. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia, da Universidade Estadual do Maranhão (PPGCSPA/UEMA). Bolsista FAPEMA. E-mail: carllla03@hotmail.com.